Estive pela primeira vez na África. Uma África bem latina, eu diria. Fiquei uma semana em Cabo Verde a convite do Kriol Jazz Festival e do Ministério da Cultura de lá. A sensação de estar em casa foi muito grande. Fui para a Ilha de Praia, capital do País, que é formado por 10 ilhas. Praia tem o jeito do Brasil, a começar pelo nome, um Brasil mais árido com certeza, mas, as pessoas, as casinhas, é como andar nas ruas das cidadezinhas do interior pernambucano.
Olhando para aquele imenso mar sem fim, almoçando com mais outros profissionais de música do mundo que também estavam comigo, ouvi a frase que fez todo sentido para justificar minha sensação de familiaridade com um lugar que nunca fui. O Ministro da Cultura, o senhor Mário Lucio, grande músico e compositor local, disse: ” olha pra frente Melina ” e quando olhei pro oceano , ele continuou: ” Fortaleza tá exatamente aqui em frente, há 3 horas de distância voando”. Eu estava perto demais do Brasil, mais do que imaginava, depois de passar quase 8 horas num vôo pra Lisboa, mais 10 horas em conexão para mais 5 horas de vôo para Praia, tudo pareceu tão longe, que perdi a noção geográfica. Eu estava mais perto do Brasil do que imaginava, mas, podia sentir.
Foi dali, daquele pelourinho da cidade velha, onde eu almoçava, que saiu o primeiro navio com os negros africanos para serem vendidos no Brasil. Era dali que partia aquela dor com destino ao meu País. Foi o meu País que acolheu toda a dor e contribuiu indiretamente para aumentá-la. Tudo com a incrível destreza de quem colonizou os cabo verdianos e os brasileiros. Os portugueses estão infinitamente mais presentes lá do que cá, seja na comida, seja na forma do acento português falado. Mas, assim como o Brasil que praticamente inventou outra forma de falar português, os caboverdianos falam entre si a língua mais interessante que já ouvi, o criolo. Eles falam o criolo no dia a dia, mas, na hora de escrever, escrevem em português. Ao ouvir o criolo, me pareceu ainda mais com o interior de Pernambuco. E, imagino, outros interiores do Brasil, mas, é o daqui que não só entendo e conheço como já vivi nele, “pro mode que” (diria o caboverdiano falando em criolo, ou diria meu primo de Pau Santo) vivi minha infância no agreste mais remoto de Pernambuco. Realmente o criolo me lembra meus tios e primas, e avós do interior falando…
Os caboverdianos tem o Brasil em alta conta, altíssima. O Brasil tem um acordo de cooperação no âmbito da educação com Cabo Verde, e entre 10 caboverdianos que conheci, 8 estudaram no Brasil, Fortaleza, Rio de Janeiro, Campina Grande…Eles amam o Brasil. Mas, dá pra entender porque: somos mesmo muitos parecidos, desde o jeito, tão alegre, animado, guerreiro, auto-suficiente, orgulhosos de suas raízes, de sua língua, de sua história. O Cabo Verde é um país pobre, mas, são muito organizados e as coisas parecem funcionar bem e o que não está bem, está sendo estudado para melhorar. É triste perceber no País ainda as dores da imigração, o País ainda precisa muito de doação de seus cidadãos que moram fora, principalmente nos Estados Unidos e Europa.
Mas voltando ao tanto que parece com o Brasil….
A música caboverdiana tem uma força, uma melodia enorme. A Morna, parece muito ao fado, mas, além dela, existem tanto outros ritmos locais. Os músicos existem aos milhares, e não são fracos, são músicos acima da média, um virtuosismo de impressionar, principalmente tocando violão, violino, ou viola, qualquer instrumento de corda. A formação são de três pessoas muitas vezes, um canta e dois tocam, ou dois tocam ou três tocam. José da Silva, um dos mais importantes produtores de música do Cabo Verde, responsável pela descoberta e por toda a carreira de Cesária Évora, e produtor do Kriol Jazz Festival, completa minha pergunta intrigada: “vendo os grupos daqui você percebe que não se precisa de um grupo com mais de 4 pessoas, se é bom, não precisa de mais” . Bom, depende. E Jô, como é conhecido por lá, sabe disso. Mas que eu fiquei lembrando das gigantescas bandas pernambucanas fiquei…
Só vi instrumentos de corda nos showcases do Fórum, então, agoniada, perguntei o porquê e a resposta veio do Charles, outro caboverdiano que entende tudo da história e é capaz de explicar com a maior tranqüilidade em 4 idiomas a mesmo coisa: ” não existem tambores aqui, porque Portugal proibiu as pessoas de tocarem tambor, pois era uma forma dos negros de comunicarem sem usar as palavras. Foi por isso que Cabo Verde também desenvolveu a técnica de fazer música com seu próprio corpo, batucando com as duas palmas da mão no centro do peito” . Bom, entre os dias de viagem entre Cabo Verde e o Brasil, num navio cheio de dor, essa proibição ficou para trás, a chegada no Brasil possibilitou o tambor voltar pras mãos dos seus tocadores e a nossa música brasileira é cheia de amor disso e por isso. A colonização portuguesa nos dois países pode ter sido diferente, mas, uma coisa nunca mudou: a música, seja tocada pelo tambor, ou no peito e na raça, ela sempre foi uma das melhores formas de se comunicar …
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Quero agradecer a algumas pessoas por esta viagem:
Mário Lucio Sousa, Ministro da Cultura do Cabo Verde , por achar que eu posso contribuir em alguma coisa para seu projeto de música para o seu País, e também pelo carinho, explicações e ótimos almoços.
José da Silva, pelos ensinamentos que ele me passou, mesmo sem saber…Jô, quando crescer quero ser igual a você.
Ana, Nadia, Cristiane, Charles e Débora pela atenção e carinho
E a delegação que esteve comigo nessa : Christoph Borkowsky, Christine Semba, Erica Smith, Maarteen, Rafael Barcot Tintor, Dominique, Corinne, Brahim El Mazned… Espero encontrá-los de novo lá, ano que vem, mas, desta vez vou pegar o vôo Fortaleza-Praia, a bordo da TACV .